Nesta edição interrompemos a série Memórias da Umbanda para escrever sobre o Culto da Cabula e suas
influências no ritual umbandista.

 

O culto da Cabula é um exemplo que aponta para a fusão dos ritos bantos com o Catolicismo/Espiritismo. Este culto, praticamente extinto, generalizou-se após a Lei Áurea e é o precursor das primitivas macumbas. Originária da Bahia passou a ser conhecida no final do século XIX após o fim da escravidão e apresentava caráter secreto e religioso. Em diversos locais recebeu a influência do Catolicismo formando uma amalgamação sincrética onde se ouviam muitos termos utilizados nos terreiros de Umbanda. No final do século XIX, a Cabula já era amplamente presente como atividade religiosa e passou a receber influências do Espiritismo.
Esse sincretismo afro-católico ocorreu, principalmente, nas áreas rurais da Bahia e do Rio de Janeiro. Pesquisas históricas dão conta de que a Cabula refere-se aos rituais negros mais antigos, que envolviam imagens de santos católicos sincretizados com os Orixás. Foi uma herança reprimida dos cultos africanos nas senzalas. Nestas práticas os antigos sacerdotes mesclavam suas crenças e culturas com o catolicismo para conseguirem praticar e preservar sua crença.
No Rio de Janeiro, do final do século XIX e início do século XX, eram comuns as práticas afro-brasileiras similares a Cabula e também ao que ainda se conhece como Almas e Angola. Na obra Kitábu, Nei Lopes (Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Editora Senac, 2005). registra sobre o culto Omolokô e o culto Cabula. Sobre a cabula, é relatado:

 

A Mesa e o Santé – a Cabula é uma confraria de irmãos devotados à invocação das almas, de cada um dos kimbula, os espíritos congos que metem medo. Também se dedica à comunicação com eles por meio do kambula, o desfalecimento, a síncope, o transe enfim. Toda confraria de cabulistas constitui uma mesa. O chefe de cada mesa é o embanda, a quem todos devem obedecer. Cada embanda é secundado por um cambone. A cabula é dirigida por um espírito, Tata, que encarna nos camanás, iniciados. Sua finalidade é o contato direto com o Santé, o conjunto de espíritos da natureza que moram nas matas. Por isso, todos os camanás devem trabalhar e se esforçar para receber esse Santé, preparando-se mediante abstinência e penitências. Cada um dos espíritos que formam o Santé é um Tata. Todo camaná tem e recebe seu Tata protetor, seja ele o Tata Guerreiro, o Tata Flor de Carunga, o Tata Rompe Serra, o Tata Rompe Ponte. Na mata moram os Bacuros, anciãos, antepassados, que nunca encarnam (incorporam). A reunião dos camanás forma a engira (…).

O Omolocô é um ramo da cabula, da mesma forma que a cabula é um ramo do omolocô, ciência dos antigos nganga-ia-muloko, que controlavam a maldição dos raios. O omolocô tem Zambi como Entidade Suprema. E cultua entidades como Canjira, o senhor dos caminhos e da guerra; Quimboto, o dono da varíola e das doenças; Caiala, senhora do mar; Pomboê, dona dos raios; Zambanguri ou Sambariri, senhor do trovão; Quiximbi ou Mamãe Cinda, dona das águas doces. No Omolocô todo pai é um Tata; seus auxiliares são os cambones; todo filho é um caçueto; e toda médium, intermediária entre o Santé e o mundo dos vivos, é uma cota. E todos são malungos, amigos, companheiros.
A bandeira do Omolocô é verde, atravessada em diagonal por uma linha branca e com uma pena branca no centro (…). O camutuê, cabeça, do futuro caçueto não será raspado, recebendo apenas uma pequena tonsura (…).

De alguma forma a Umbanda tem influências da cabula, pois mantém forte a presença do Orixá em sua pratica doutrinária.
No Rio de Janeiro, antes mesmo de Zélio F. de Moraes incorporar o Caboclo Sete Encruzilhadas, no ano de 1908, já era bastante comum à prática dos rituais afros similares aos que conhecemos hoje como Cabula, Omolocô e Almas e Angola. Talvez com o surgimento da Umbanda tenha-se obtido uma maior organização no que se refere ao desenvolvimento mediúnico, à prática da caridade e o auxílio ao nicho populacional menos favorecido.
A cabula foi perseguida ferozmente pela polícia. O pesquisador Roger Medeiros diz que o temor e, consequentemente, a perseguição à cabula vêm lá de trás, ainda por ocasião da escravatura, quando ela foi usada pelos negros como força revolucionária nos seus confrontos com os fazendeiros. A cabula era um ritual para abater os inimigos com feitiço, executando continuamente líderes escravagistas, especialmente aqueles que perseguiam os negros fugidos da senzala. Era, em verdade, um instrumento de luta manejado por um guerreiro invisível e intangível, de demônios constituído. O ódio era maior, principalmente se esse feiticeiro fosse remanescente dos vindos da África.
Manter o segredo sobre o ritual era como uma lei para não ser desobedecida nunca pelos seus adeptos. Há inúmeras histórias de adeptos da cabula presos e torturados pela polícia, mas que jamais revelaram os segredos de seus rituais. A longevidade da cabula andou, inclusive, por conta desse pacto da sociedade negra para com a sua religião, segundo o historiador Maciel de Aguiar. Maciel divide em dois momentos distintos a cabula: uma em que ela mantinha a chama revolucionária e outra servindo às rixas entre suas próprias comunidades.


Em meados do século XX a cabula passou a sobreviver com outros propósitos. Mas o seu começo foi realmente o de servir à luta pela libertação dos escravos. Sua eficiência foi tamanha nesta etapa que o governo da Província, instigado pelo padre da região, Duarte Pereira Carneiro, instituiu a guerrilha de São Mateus para o extermínio da cabula.
Ainda segundo Maciel, essa guerrilha remanejou para São Mateus capitães do mato de outras regiões do país. Entre eles veio um dos mais temidos, o cearense Francisco Vieira de Melo, que executou o Negro Rugério, chefe do Quilombo de Santana. Mas escaparam dele outros líderes revolucionários, entre eles Benedito Meia Légua e Clara Maria do Rosário, que só seriam mortos depois da ida à região do bispo diocesano do Estado, Dom João Batista Correia Nery.
Mas o bispo só chegou lá depois da abolição da escravatura, movido pelo momento por que passava o país, ainda tomado pelo alvoroço religioso-fanático de Antônio Conselheiro no sertão da Bahia. Desconfiavam os dirigentes católicos da terra que este mesmo fanatismo do sertão baiano seria transportado para a região do vale do Cricaré, onde existiam, na época, cinco mil escravos libertos.
Por esse tempo, a Cabula havia crescido muito, tinha deixado de ser apenas religião dos negros fugidos, passando a ser, também, dos negros libertos e praticamente de toda a população negra. A partir desse novo contingente de frequentadores, ela dedicou-se também ao culto aos seus heróis revolucionários, com a sistemática encarnação nos cabuleiros dos espíritos revolucionários de Benedito Meia Légua, Negro Rugério e Maria Clara do Rosário.
Por esse período da grande afluência dos negros a cabula, que vai da abolição da escravatura (1888) ao inicio do século XX, passando pela transição da Monarquia para a República, o bispo Dom João Batista Nery conseguiu que o governo pusesse em execução a maior perseguição policial a cabula, sob suspeita, novamente, de que ali estaria também para surgir um novo Canudos, com outro fanático à frente do tipo de Antonio Conselheiro.


A intervenção do bispo chegou ao ponto de fazer o governo considerar a cabula uma atividade criminosa. E a cabula defendeu-se caindo na clandestinidade, disfarçando sua atividade na prática do Espiritismo, que era tolerado pelas autoridades policiais.
O Bispo Dom João Corrêa Nery fez, no início do século XX, em uma pastoral, a descrição deste culto onde diz que a Cabula é semelhante ao Espiritismo e à Maçonaria, reduzidos a proporções para a capacidade africana e outras do mesmo grau.
O tema foi retomado por Nina Rodrigues apontado para a explicação de que o Espírito que comanda os trabalhos é chamado de Tatá. Seus adeptos, chamados de Camanás, devem guardar sigilo absoluto sobre os rituais sob pena de morte por envenenamento.
Tal qual no Catimbó, as sessões são denominadas mesas e o chefe de cada mesa é chamado de Embanda, sendo auxiliado pelo Cambone. A reunião dos camanás (cabulistas) forma uma Engira. Todos devem obedecer cegamente ao Embanda sob pena de castigos severos. Usam calças e camisas brancas e lenços amarrados na cabeça.
O templo é denominado de Camucite. O local é secreto, sempre embaixo de uma árvore frondosa no meio da mata, em torno da qual é limpa uma extensão circular de aproximadamente 50 metros. Feita uma fogueira, a mesa é colocada do lado leste, rodeando pequenas imagens com velas acesas, simetricamente dispostas.
As velas são denominadas estereiras e são acesas iniciando-se pelo leste, em honra ao mar (calunga grande), depois para o oeste, norte e sul. Logo após a abertura do ritual, o Embanda, ao som dos nimbus (pontos cantados) e palmas compassadas, se contorce, revira os olhos, bate no peito com as mãos fechadas até soltar um grito estridente. Vejamos um desses nimbus:

Dai-me licença, carunga
Dai-me licença, tatá
Dai-me licença, báculo
Que embanda qué quendá

O cambone traz então um copo com vinho e uma raiz. O Embanda mastiga a raiz e bebe o vinho. Serve o fumo do incenso, queimado neste momento em um vaso e entoa o segundo nimbu:

Báculo no ar
Me queira na mesa
Me tombe a girar

O Embanda, ora dançando ao bater compassado das palmas, ora em êxtase, recebe do cambone o candaru (brasa em que foi queimado o incenso), trinca nos dentes e começa a emitir chispas pela boca, entoando então o nimbu:

Me chame três candaru
Me chame três tatá
Sou Embanda novo (ou velho)
Hoje venho curimá

É a hora das iniciações. Os pleiteantes (caialos) a camanás (iniciados), vestidos humildemente com calças brancas e camisa da mesma cor e descalços, são levados pelos seus padrinhos até o Embanda e tão logo adentram o círculo, passam três vezes por baixo das pernas do Embanda. Este aspecto do ritual é denominado tríplice viagem, que simboliza a fé, a humildade e a obediência a seu novo pai. O Embanda recebe a emba (pemba pilada) e com ela fricciona os pulsos, a testa e o occipital do caialo, que depois mastiga a raiz e bebe o vinho oferecido pelo Embanda.
Após esse ritual o Embanda toma uma vela acesa, benze-se e começa a passá-la por entre as pernas, por baixo dos braços e pelas costas do camaná. Se porventura a vela se apagar diante de um dos camanás, esse deverá ser castigado com várias pancadas na mão com o kibandan (palmatória), até que a vela não mais se apague. Esses castigos são frequentes e o Embanda manda aplicá-los sempre que julga conveniente, para o aperfeiçoamento dos camanás.
Então, avaliada a fé de todos os camanás, prossegue-se com a tomada do santé, que é a parte principal das reuniões. Entoam um nimbu apropriado e o Embanda dança, com grandes gestos e trejeitos para que o Espírito se apodere de todos. De tempos em tempos todos lançam ao ar a emba, para que se afastem os “maus espíritos” e fiquem cegos aos profanos, não devassando assim os seus segredos.
Os espíritos que baixam nos adeptos identificam-se como Tatá Guerreiro, Tatá Flor de Carunga, Tatá Rompe-Serra, Tatá Rompe-Ponte etc. Este culto praticamente não existe na atualidade e foi absorvido pelo Catimbó Jurema e pelas macumbas, principalmente no Rio de Janeiro. Tata Tancredo Silva Pinto e Byron Torres escrevem sobre o ritual dos cabulistas:
Os cabulistas faziam os seus trabalhos nas matas virgens e eram conhecedores profundos dos pontos cabalísticos de leitura muito difícil.
Desse culto originou-se, mais tarde, a Linha das Almas, em consequência do sincretismo católico, que trouxe as palavras “almas” e “espírito”. Passaram então, os cabulistas a fazer as suas obrigações para as “almas”, mas dentro do seu culto.
Na Lei das almas, os homens são chamados de mucambos e as mulheres de mucambas. O médium de modo geral é camba.
Os cambas, quando em trabalho de culto, usam um largo cinturão, onde trazem, embutidos, diversos amuletos, pedaços de aço, de ferro, ferraduras pequenas, duas estrelas de prata etc. Os seus auxiliares diretos são os embandas, os cambonos de gira e outros. Os espíritos da natureza que habitam nas selvas são chamados de Santé e têm, nos nomes, algumas semelhanças com os demais cultos. Assim, Tata Veludo corresponde a Exu.

Tata das Matas, a Oxóssi, Tata da Pedreira, a Xangô etc. Os que vão iniciar nesse culto recebem o nome de camanás, para os homens, e mucambas, para as mulheres. Os seus trabalhos são realizados embaixo das árvores consagradas no culto, dentro das matas. Esse trabalho chama-se mesa e é assistido pelos sacerdotes menores, como os embandas. A mesa (trabalho) é aberta três dias antes ou depois da Lua Nova, conforme a natureza do trabalho. Acendem uma vela na direção Norte-Sul, riscando um grande signo de Salomão, de 35 ou oito pontas e colocando uma cruz nesse local.

Na mesa, debaixo das árvores consagradas, colocam espelhos, pedras, cachimbos grandes e pequenos, um alguidar com uma infusão de raízes, como guiné, e outras, além de tocos e banquinhos. Os Santés, quando arriados, batem no peito, emitindo um ronco oco, acompanhado pelas palmas ritmadas dos presentes. Os Pretos Velhos, espíritos de velhos Tatas, dançam flexionando os joelhos. Percebem-se algumas diferenças em relação ao que foi relatado por Nina Rodrigues. Com a urbanização do Rio de Janeiro, ficou cada vez mais difícil a pratica da cabula nas matas e o culto passou a ser praticado nos terreiros, acabando por amalgamar-se com as macumbas. É um culto praticamente extinto.

Editor: Diamantino

Fernandes Trindade

 

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