MEMÓRIAS DA UMBANDA
Diamantino Fernandes Trindade
MÚSICA DO BRASIL: 1816-1850 – A INFLUÊNCIA NEGRA
Adolfo Morales de Los Rios Filho
Vamos Ler! n. 18, 3 de dezembro de 1936
A música do negro é acentuadamente rítmica, e, portanto, pobre em melodias.
O compasso, marcado pelo ritmo permanentemente cadenciado dos instrumentos de percussão – ganzás, atabaques, gonguês, e piútas – e pelos batimentos de pés e mãos, é demasiado uniforme e até enervante.
Sofre, porém, algumas vezes e imprevistamente, uma ligeira mutação ou síncope. É uma exclamação de estrema sensibilidade, um rumor, grito ou sussurro. É uma ligeira modificação no ritmo geral, um improviso dos tocadores. É o eco africano transportado no dorso das nuvens para as terras americanas. É a Etiópia, a Hotentotia, o Senegal.
O canto – que sempre acompanha as danças, pois o negro não canta sem dançar – é rico de ritmos e de acentuado colorido. É, entretanto, triste. Saudade chorosa das terras da África. Canto dolente da Flórida, Jamaica, Cuba, Haiti e Brasil: terras da escravidão.
Ao som do banzo ou pandeiro, do carimcó, do cracachá, do berimbau, da marimba, do adufo, do mulungo, do caxambú, do chequerê, da viola e de inúmeros tipos de chocalhos inspirados no maracá – os negros e negras, uns frente a outros, volteavam, requebravam as ancas, roçavam ombros e traseiros, contorciam-se, rebolavam, faziam tremelicar peitos e seios, mergulhavam, deslizavam, sapateavam e oscilavam; – quer fosse no candomblé, no côco, no chorado, na fofa, na chocaina, quer na capoeira, que simbolizava o combate, no quizomba: dança nupcial angolense, no lundu, lúbrico e tremelicante movimento coreográfico, e no jongo, que, sendo uma espécie de candomblé, constituía a dança das fazendas.
As danças dos negros eram coletivas – apresentando, também, as duas feições principais: mímicas e ginásticas – e de pares e emparelhadas.
Nas danças mímicas, os negros personificavam cenas amorosas e os atos fetichistas. Quando se tratava destes últimos, elas tinham caráter mais grave, solene, como é o caso dos realizados nos candomblés, onde se evocavam os espíritos, se faziam preces ou eram consultados os oráculos.
Nas danças ginásticas, os negros imitavam por meio de pulos, movimentos bruscos e atitudes belicosas, não só combates, como cenas de caça. Os dançarinos, que evoluíam no meio da roda, eram quase sempre homens e acentuavam, com as suas curiosas e imprevistas atitudes, o caráter do ato coreográfico.
Foi daí que surgiram os quicumbres e os quilombos, nos quais se simulam os combates entre negros fugidos e indígenas.
Mas, tudo se foi transformando e surgiram as danças de ritmo sincopado e de origem luso-espanhola: a cana verde, o miquirão e o chula-fado. Aproveitando esse ritmo, o negro formou o batuque, que constitui a exteriorização do amor.
O batuque, o batucajé ou batucada, é a mais alta expressão coreográfica dos afro-brasileiros. As vozes esganiçadas das mulheres têm como contraste as vozes roucas dos homens. Palmas, lamentos, exclamações, berros, uivos, assobios e batimentos dos pés, acentuam ou quebram, abruptamente, o compasso. A excitação, o frenesi, vai apoderando-se de negros e pardos. Todos se lançam doidamente à dança e ao canto, invocando nesse, os seus fetiches e santos, os animais, o sertão, a noite, a lua…
As cantigas – acompanhadas do toque, ou ruído martelante dos instrumentos de percussão – explodem em uma linguagem estranha e complexa; em uma algaravia.
Eis um exemplo bem característico:
Viado no mato
É corredô
Cade Ochoça
É cacadô
Ô! Bamba eu vai tirá
Ô! Bamba eu tira memô
Outras são mais compreensíveis e poéticas. Haja vista a que segue, com invocação à lua.
Brilha no Céu a lua nova
Bordada de ouro
Macumbebê
Olha macumbebê, olha macumbaria
Naturalmente se compreende que o negro não diz brilha e olha, como foi escrito e dito para melhor apreensão, e sim bria e oia.
O toque aumenta de intensidade. A aceleração com que os instrumentos são percutidos é, também, cada vez maior. Ferve a macumba, arde o candomblé.
O pai do terreiro dirige os cantos e as cerimônias.
Invocam-se os gêmeos e lá vêm os dois santos eternamente unidos.
São Cosme, São Damião
Cadê Doum
Doum, Doum
Tá na mesa da Umbanda, Umbanda
Umbanda, Umbanda
Eu vou conta a vovô
Que a maradinha chegou
Foi Doum, foi Doum
Foi Doum, o merecedô
Negra dançando
Vamos Ler!, n. 18, 3 de dezembro de 1936
Negro dançando
Vamos Ler!, n. 18, 3 de dezembro de 1936