Vidas negras importam. A dominação da elite branca e a invisibilidade dos negros em nossa sociedade é um caminho paradoxal de luta diária pela valorização da vida: de um lado os negros gritam por respeito e apesar de alto, seus gritos parecem mudos. Do outro, uma sociedade frenética por produtividade e lucro continua escravizando, segregando, excluindo seus direitos e tampando os ouvidos para o grito dos negros e todo tipo de oprimido, mais parece uma sociedade surda.
Nossos noticiários estão fartos de injustiças. Negros morrem diariamente no subúrbio das grandes cidades, jovens são arrancados do seio de suas famílias, seus sonhos são roubados. Famílias esfaceladas choram vidas inteiras pelos seus que se foram, mas os seus gritos de dor parecem que não são ouvidos.
Contudo, desta vez foi diferente. Demorou 132 anos para que sociedades de todos os países enfim, gritassem a plenos pulmões: VIDAS NEGRAS IMPORTAM! Nós cansamos, estamos fartos de tantos abusos contra a dignidade humana. De absurdos diários fazerem parte do nosso dia a dia e de fingirmos que somos cegos. Até onde vai a nossa insensibilidade, até onde vai o nosso discurso por igualdade, que de fato não promove ações transformadoras?
Não bastou arrancá-los de sua pátria; afastá-los de suas famílias; tirar-lhes a liberdade; trata-los pior do que aos animais. Percebeu-se de não era mais possível a escravidão. E o que fizemos depois? Nada de desculpas, nada de remorsos, nenhum interesse em consertar o erro nenhum apreço pela vida humana. Simplesmente lançados à margem da sociedade, deixados à sua própria sorte e ainda pior, como se fossem inferiores a nós brancos, que quase sempre esquecemos o que nossos antecessores brancos fizeram e, sem querer, muitas vezes reproduzimos o discurso escravagista, sem se quer nos demos conta do que estamos fazendo.
UM FARDO MAIS DO QUE INJUSTO
Nada mais injusto do que deixar a cargo do oprimido o compromisso de livrar-se sozinho do seu opressor. Incumbir a criança maltratada de livrar-se do agressor; deixar à mulher vítima de violência a responsabilidade de libertar-se do homem violento; deixar a cargo apenas do negro o dever de inibir e aniquilar o racismo. Não! Isso está errado. Jamais desmerecendo sua luta nem tampouco tirando-os do protagonismo, há uma parte da população disposta a acompanha-los em sua luta e nós fazemos parte dela.
Logo após a horrível morte de um americano, choramos por um brasileiro de apenas cinco anos, o Miguel Otávio Santana da Silva, que caiu do 9º andar do prédio que estava porque a primeira-dama Sari Corte Real não pôde perder alguns minutos de seu precioso dia para olhar o filho da sua “empregada” (mãe do pequeno Miguel) após mandá-la passear com seu cachorro.
Nos causa revolta e indignação fatos como estes!
A COMPREENSÃO NECESSÁRIA
Felizmente havia um inconsciente coletivo se formando. Quando a gota d’água que faltava, ou seja, a morte estúpida e inexplicável de George Floyd, fez levantar toda a população, primeiro nos EUA, e rapidamente em outros continentes, assumindo que esta é uma luta de todo ser humano, não existe negro, branco, ou amarelo, somos todos seres humanos de passagem nessa vida terrena, tentando dar o melhor de cada um e muitos têm conseguido.
O CASO GEORGE FLOYD
O caso de George Floyd despertou no mundo a indignação necessária para lembrarmos que vidas negras importam, que somos todos seres humanos, que todos precisam ser respeitados independente do erro que possamos cometer.
Floyd não era um santo. Cometeu violências no passado. O site dunapress.org afirma que ele teria sido preso nove vezes. Entre os delitos cometidos tráfico de drogas e roubos. Mas o estopim não foi a nota de 20 dólares falsa, nem o seu passado delituoso pois ninguém leva escrito na testa sua ficha policial. O “principal erro” de Floyd era ser negro, numa sociedade que diz que vidas negras não tem valor, que não merecem respeito. Sabemos que a abordagem seria diferente se ele fosse branco.
RACISMO ESTRUTURAL
O racismo estrutural está implantado em nosso subconsciente e muitas vezes reproduzimos um discurso racista, agimos de forma racista e nem se quer percebemos. Fazemos piadas com negros, a nossa linguagem está impregnada de expressões de opressão, temos dificuldade de aceitar a igualdade nas relações sociais, isto é o racismo estrutural.
Reproduzimos um imaginário Brasil-Colônia inconsciente, onde o negro escravizado é parte importante para a supremacia branca. De modo que existe uma estrutura social de subjulgação do negro a condição de subserviente ao branco de certa forma “normatizada”. Assim, achamos “tranquilo” termos uma empregada doméstica negra mas achamos “estranho” quando uma negra é presidente de uma empresa ou protagonista de uma novela.
Nosso vocabulário diário reproduz diariamente absurdos, como chamar uma negra de “mulata”, sem lembrar que a expressão vem de mula (animal hibrido originário do cruzamento do jumento macho com a égua), resultando assim de um animal estéril usado para carregar peso.
Sabemos que as negras eram estupradas pelos colonizadores e usadas como servas particulares de seus prazeres sádicos e ainda assim quando mulheres brancas querem se valorizar nos relacionamentos afirmam “não pense que sou tuas negas”, negligenciando que seu discurso legitima que “negras podem ser exploradas sexualmente”.
Falamos que temos uma “inveja branca” querendo dizer que o sentimento supostamente negativo da inveja, não é tão negativo assim pois é branco, consequentemente, o do negro seria pior.
E assim, seguimos reproduzindo discursos e ações inconscientes, muitas vezes, de segregação, e humilhação ao negro, reforçando estereótipos de inferioridade e supremacia do poder do branco. Isso é o racismo estrutural de nossa sociedade.
UMA MUDANÇA DE HÁBITOS
Como já mencionei o primeiro passo foi dado, e o segundo? Você sabe o que fazer agora? Após ir às ruas exigindo justiça, após deixar claro a posição de uma sociedade saturada com tanto desequilíbrio social, que tal iniciarmos uma nova etapa de costumes? O que poderá fazer a diferença?
? Você já fez um balanço se frequenta e divulga lojas que sejam de empresários negros?
? Você já teve a curiosidade de ler autores negros?
? As personalidades que você admira, sejam músicos, cientistas, médicos, personalidades das mais diversas áreas, quantos deles são negros?
? Você já teve o interesse em buscar informações sobre personalidades negras, o que fizeram e por quê?
? Você já “se pegou” numa roda de amigos, num dia qualquer, e alguém “puxou” o assunto e iniciaram uma conversa sobre racismo, intolerância e discriminação?
? Quantos amigos negros você tem? Amigos próximos de verdade que você compartilha suas alegrias e confia neles?
? Quantos relacionamentos amorosos você já teve com pessoas negras?
Parecem coisas óbvias mas não são. Sair às ruas é importante sim para chamar a atenção de todos e para expor uma situação incorreta. Porém podemos fazer muito mais. A atitude individual de cada um de nós é responsável por uma sociedade mais igualitária.
RACISMO X PANDEMIA? ou
RACISMO PÓS PANDEMIA?
Nada é simples, principalmente quando se trata das relações humanas. Estamos em meio a uma terrível pandemia, muitos de nós já se foram, outros em tempo de espera e outros tantos nem sabem que serão os próximos. Enquanto isso, muitos ressurgem das cinzas para continuar suas jornadas, mesmo quando não mais inspiravam esperanças. Alguns acreditam que quando a pandemia passar as pessoas estarão diferentes, mais conscientes e evoluídas. Outros acreditam que tudo retornará ao que era antes porque as pessoas não serão capazes de mudar.
Eu creio que há um propósito para tudo, mas também não consigo deixar de pensar que para algumas pessoas essa experiência não as mudará em nada. Mas sim, o mundo está mudando, muitas pessoas estão finalmente despertando para o que realmente importa. Infelizmente ainda choraremos por mais “Georges Floyds” ou por “Migueis Otávios”, mas o primeiro passo foi dado: a mobilização contra o racismo e por direitos iguais envolvendo uma sociedade farta de abusos, arbitrariedades, cinismos e arrogâncias.
Finalmente, em diferentes idiomas e através de muitos cidadãos, uma única frase ecoa por todo o planeta: