A Lei Penal do Império determinava que o escravo era considerado rês (simultaneamente coisa e pessoa) e, portanto, nenhuma autorização tinha para exercer direitos civis e, quiçá, políticos. Como objeto que respirava, somente devia ser útil aos seus compradores e não levantar nada além dos braços para carregar mais um pacote de grãos.
Caso fugisse, ganhava anúncio no Jornal do Commercio com imagem e descrição tão bárbara quanto o tempo permitia. Humanos de verdade eram os detentores do poder financeiro e não seus subordinados. Humildemente eles vêm à terra de seus algozes: sem barulheira, sem “dançarias”, sem alegoria pra encantar os olhos e desviar a mente.
Nada pedem além de uma caneca – por vezes enferrujada – de café preto quentinho, um cigarro de palha para as defumações e algumas velas para trabalhar na força de “nosso Sinhô Jesus”. De barra da calça dobrada e pés nus no chão, atendem desconhecidos, conhecidos e companheiros de outras jornadas; ninguém sai sem um abraço apertado com cheiro de vô e a esperança de volta no peito. “Fio precisa aprender a perdoar”, diz sempre Preto-Velho numa voz caridosa de quem viveu de tudo muito, aconselha em tom de novidade mesmo que já tenha repetido a frase centenas e tantas vezes porque sabe como ninguém que a verdadeira libertação da alma não acontece sem deixar “as coisas ruins” irem embora.
Também diz com orgulho que não cabe no peito e vai pra garganta que “escravo pode apanhá do feitô, mas feitô jamais vai apanhá do escravo” e se indagar o motivo, ele taciturnamente responderá: “s’eu faço igual então também sô feitô que bate nos escravo”. Vô superou o chicote, a fome, o desespero, a tristeza profunda de ser arrancado de sua casa e trazido para um mundo onde sua língua, cultura e existência não valiam mais do que alguns réis; o classificam com a palavra da moda: Preto-Velho tem resiliência. E tem mesmo. Batalhou sozinho, ele contra ele mesmo e os “dois” contra a selvageria dos capitães do mato que perseguiam a si e a seus irmãos de etnia como leões enfurecidos em busca duma presa boa para o jantar.
Vovô hoje abrilhanta os terreiros de Umbanda com o sorriso no rosto e a caridade nas mãos; nem parece que foi separado de sua família, transportado num navio-pesadelo com nome intimidador com tantas boas intenções quanto seus tripulantes (Amável Donzela, Brinquedo dos Meninos, Caridade, Feliz Dias a Pobrezinhos etc), trocado por pedaços redondos de metal e obrigado a sustentar o luxo que jamais seria seu. Em sua calmaria as perturbações do homem têm pouco ou nenhum espaço, em seu colo acolhedor de almas sofridas as lágrimas descem e se transformam em flor, em sua compreensão os julgamentos da mente cheia de artimanhas invalidam-se e evaporam como cinzas ao vento. Tanta é a sabedoria que o silêncio após um relato deixa de ser incômodo para se transformar num afago para os tantos barulhos das adversidades. Preto-Velho, embora livre das correntes, ainda volta a nós para nos livrar das nossas.