Senzala: Revista mensal para o negro (SP), n.2, fevereiro de 1946
A sessão solene realizada pelas associações negras de São Paulo no dia dois de maio para celebrar o cinquentenário da Abolição, não pude deixar de sorrir melancolizado ouvindo um dos oradores negros da noite falar em “negros de alma de arminho” (Pelagem branca de um pequeno animal carnívoro chamado arminho, usada para confeccionar mantos reais, principalmente na Idade Média). Assim, era ele mesmo, um negro, a esposar essa fácil e trágica antinomia de origem branco-europeia, pela qual se considera a cor branca simbolizadora do Bem e a negra simbolizadora do Mal.
Mas não é apenas este orador negro a esposar a detestável tradição branca do simbolismo das cores. Conta Paulo Prado que era costume entre os negros a frase-feita “negro sim, porém direito”, da mesma forma com que os brancos carinhosamente (carinhosamente?) diziam dos escravos velhos serem “negros só na cor”, como registrou Vieira Fazenda, ou mais geralmente até agora falar-se em “negro com alma de branco”, ou com “alma branca”.
Em Portugal correu também o provérbio:
“Ainda que negro é.
Alma tem, honra e fé”
Se qualquer de nós, brasileiros, se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é frequente chamar-lhe:
– Negro!
Eu mesmo já tive de suportar esse possível insulto em minhas lutas artísticas, mas parece que ele não foi lá muito convincente nem conseguiu me destruir, pois que vou passando bem, muito obrigado.
Mas é certo que se insultamos alguém chamando-lhe “negro”, também nos instantes de grande carícia, acarinhamos a pessoa amada chamando-lhe “meu negro”, “meu nego”, em que, aliás, socialmente falando, mais verdadeiro apodo (Comparação jocosa ou ultrajante) subsiste, o resíduo escravocrata do possessivo: negro sim, mas meu…
No Brasil não existe realmente uma linha de cor. Por felicidade, entre nós, negro que ilustre pode galgar qualquer posição. Machado de Assis é o nosso principalíssimo e indiscutido clássico de língua portuguesa e é preciso não esquecer que já tivemos Nilo Peçanha na presidência da República.
Mas semelhante verdade não oculta a verdade maior de que o negro entre nós sofre daquela antinomia branco-europeia que lembrei de início, e que herdamos por via ibérica. Isso talvez possa um bocado consolar o negro da maioria dos apodos que o cobrem. É ver que o branco, o possível branco o despreza ou insulta exclusivamente por superstição.
Pela superstição primária e analfabeta de que a cor branca simboliza o Bem e a negra simboliza o Mal. Não é porque as culturas afro-negras sejam inferiores às europeias na conceituação do progresso ou na aplicação do individualismo; não é, muito menos, porque as civilizações negras sejam civilizações “naturais”; não foi inicialmente por nenhuma inferioridade técnica ou prática ou intelectual que o negro se viu depreciado ou limitado socialmente pelo branco: foi simplesmente por uma superstição de cor. Na realidade mais inicial: se o branco renega o negro e o insulta, é por simples e primária superstição.
Em quase todos ou todos os povos europeus, o qualificativo “negro”, “preto”, é dado às coisas ruins, feias ou maléficas. E por isso nas superstições e feitiçarias europeias e consequentemente nas americanas, a cor preta entra com largo jogo. Já Leite Vasconcelos o observou muito bem. Hermann Urtel, refletindo que seria porventura o aspecto exterior rebarbativo dos judeus que os tornou culpados das atribuições da feitiçaria que os portugueses lhes davam, conclui que esse foi certamente o caso dos negros. Aliás, entre os próprios negros africanos a antítese branco-negro para simbolizar o Bem e o
Mal persiste, sendo difícil já agora dizer se tradição deles mesmos ou lhes transmitida pelos brancos europeus.
Os hotentotes (Denominação atribuída pelos holandeses a um povo pastor e nômade do Sudoeste da África), os congueses e outros povos bantus guardam a tradição de um castigo que lhes teria dado a inferioridade de cor. Entre certas tribos de Moçambique grassa uma lenda curiosa que parece inspirada no caso bíblico de Noé. Lá se conta que uma vez o bom Deus Mulúcu tendo tomado uma bebedeira, tirou as roupas e caiu nu no meio da estrada. Então passaram os africanos e caçoaram de Mulúcu. Depois passaram os europeus que o cobriram de folhagem para esconder o ridículo do deus nu.
E Mulúcu, por isso, castigou os africanos tirando a inteligência deles e lhes dando a cor preta. Porém, macacos me mordam (“Macacos me mordam”, segundo algumas teorias afirmam é que essa expressão poderá ter sua origem em uma frase dita pelo Conde d’Eu durante a guerra do Paraguai. Usou essa expressão para indicar que essa seria a consequência que teria caso não derrotasse o líder paraguaio.
Usou o termo macacos, de forma racista e incorreta, para se referir aos soldados brasileiros que eram maioritariamente escravos negros) se não foi algum europeu que botou esta malvadeza no lendário dos moçambiques… A cor preta é sinistra, e para os europeus simboliza tristeza e luto. Na Beira Baixa registrou-se a quadrinha:
“Chita preta, chita preta,
Chita preta entrançada,
Por causa da Chita preta
Ando triste, apaixonada”.
“Casa Maria com Pedro? Casamento negro”, dizem no Turquel (freguesia portuguesa do concelho de Alcobaça, com sede na vila do mesmo nome); e entre os provérbios e frases-feitas portugueses, registrados por Perestrelo da Câmara vem a comparação: “negro como a alma do diabo”.
Na feitiçaria e na superstição europeias agem o galo preto, o grato preto, o bode preto etc. Em Portugal se diz que é bom ter sempre uma galinha preta em casa, porque as desgraças cairão todas sobre a ave: ao que em Vila Nova de Famalicão se específica melhor que a galinha preta afugenta qualquer doença. Em Vila Real a borboleta branca é sinal de boa notícia, e a preta de má, pelo que a matam. No
Alentejo, galo cantando de noite todas as coisas se espalham, e se é preto então a desgraça ainda é maior.
Na feitiçaria, o preto é também duplamente usado: 1) Como cor do mal; 2) Mas tão detestável que afugenta o próprio mal. O bode preto é o das bruxas e bruxedos europeus, que veio feminizar-se entre nós na cabra preta dos catimbós e candomblés. Em um curioso texto português setecentista, “As Bruxas Namoradas” invocam o bode preto diabólico pela boca de Bruxamaia, em decassílabos mais ou menos frouxos:
“Correio da ferra, ó bodes cor da noite,
Acendei com as caudas a fogueira!”
No “Auto das Fadas” de Gil Vicente, o galo é preto, o gato é preto, o bode é preto, o corvo é o pêz (Substância resinosa do pinheiro e de outras árvores pináceas; resina ou seiva dos pinheiros) são pretos. E mais: o próprio “sino saimão”, o signo de Salomão, está “metido em um coração de gosto preto”.
Mas que o preto chegue a horrorizar as próprias bruxas europeias, não há dúvida. Leite de Vasconcelos, ainda uma vez, colheu um refrão usado pelas bruxas portuguesas de Alcobaça que diz assim:
“Galo branco,
Não me espanto.
Galo loiro?
É Agoiro.
Galo preto?
Não me meto!
E essa é a crença universal, como prova outro autor pela Revista Lusitana, Volume XXI. A cor preta é tão horrível que é da maior eficácia como exorcismo, usada para afastar bruxedos e feitiçarias e quase todos os malefícios extranaturais.
Em todo caso é possível por motivos econômicos não ser muito exigente com a cor negra… É ainda em Portugal (Turquel) que corre o provérbio condescendente:
Negro é o carvoeiro
Branco é o seu dinheiro.
Esta superstição primeira, pueril e depreciativa, os negros no ostracismo do Bem. Não se trata de uma questão antropológica, nem da estupidez de um Gobineau ou de um ariano, nem de uma comparação de culturas: trata-se de uma simples superstição de cor, anterior ao convívio histórico de pretos e de brancos, que se descarregou sobre as raças negras dominadas. Aplicou-se ao preto homem o que se dera à cor preta, fosse na chita ou no pelo do bode. E o homem preto chega por isso a ser o próprio diabo.
Quando este aparece no famoso desafio que teve com Manuel do Riachão, aparece na pessoa de um negro. Lindolfo Gomes lembrando a tradição do “negro velho” em cima do telhado, que recolheu em Minas, verifica também que ele é o símbolo do demônio, a quem o povo ainda chama de “negro sujo”. Às vezes pela cor que tem, é um valor exorcístico, afasta as desgraças e dá felicidade; outras vezes, pela cor que tem, é um valor invocativo, chama as desgraças. Preso por ter cão, preso por não ter cão (Em Portugal a expressão significa ser penalizado qualquer que seja a ação).
Já em Portugal ver uma mulher preta dá infelicidade mas ver um preto dá felicidade: ver um casal é felicidade garantida. No Nordeste brasileiro ver um padre e depois um soldado traz felicidade, mas ver um padre e depois um negro traz desgraça. Em Barretos, viajante encontrando negro velho na estrada, é sinal de desastre na viagem. Entre outras superstições colhidas por Edmundo Krug em nosso Estado, preto vestido de branco dá possibilidade de a gente se avistar com a pessoa amada e a contagem de pretos entra nas sortes de amor e nas loterias, mas também ver preto cambaio (De pernas tortas) é sinal de desgraça e sonhar com preto conhecido é doença, desgosto ou a própria morte da família.
Todas estas observações podem ser mesquinhas como elevação moral do homem branco ou muito interessantes como folclore mas é realmente trágico a gente verificar que foi de uma simples superstição inicial, uma questão de cores-símbolos, que o branco derivou o seu repúdio, a sua repulsa por toda uma larga porção da humanidade, as raças negras.
Deus onisciente nas coisas da eternidade, é onisciente nas coisas da terra. Os dois grandes castigos terrestres registrados pela Bíblia o provam bem. Querendo castigar os israelitas, Deus tirou-lhes a pátria, querendo castigar os filhos de Cam, deu-lhes a cor. Por acaso virá um dia em que celebremos o homem, liberto de suas trágicas superstições?
Editor: Diamantino
Fernandes Trindade